Da série Eu e a Vida:
Coisas da Vida

Era uma linda manhã de sábado, lá estava eu, sentada no ponto de ônibus, ainda sonolenta. Mesmo atrasada, não me incomodei com a demora. Pelo jeito logo passaria um, o ponto estava cheio.

Era uma linda manhã de sábado, lá estava eu, sentada no ponto de ônibus, ainda sonolenta. Mesmo atrasada, não me incomodei com a demora. Pelo jeito logo passaria um, o ponto estava cheio.
Eu estava ali, distraída, perdida em meus
pensamentos. Notei se aproximando uma moça muito bonita, bem vestida, olhando
para os lados meio confusa. Quando ela chega mais perto, percebe as pessoas
paradas no ponto de ônibus e, também resolve parar. Eu continuei olhando para
ela, atraída por aquela beleza diferente e comum ao mesmo tempo. Tive a
sensação de que a moça não sabia muito bem o que estava fazendo ali. E, agora mais
perto, eu vi que ela não era tão jovem como eu pensei. Mas era
realmente muito bonita.
Chegou um ônibus, não era o meu. Continuei
sentada olhando as pessoas entrarem, o dia estava tão lindo que eu estava
sorrindo, sem pensar em nada, apenas sorrindo. A mulher, que estava por último
na fila, esperando sua vez de entrar no ônibus, olha para mim e sorri de volta.
E nessa hora eu tive certeza que ela não sabia aonde estava indo, pois
imediatamente ela desistiu da fila e resolveu esperar o próximo ônibus. Ficou
parada ao meu lado, também sorrindo. Eu abaixei a cabeça, sem graça, por ter
sido pega no flagra na minha observação, mas logo levanto e volto a observá-la.
Era fato que aquela mulher não era igual a nenhuma outra, tinha os cabelos
extremamente brilhantes, um olhar terno, ingênuo, e ao mesmo tempo muita
sabedoria, e muito mais, que fazia com que eu continuasse olhando.
Já sem jeito, eu resolvo puxar uma conversa,
como quem não quer nada:
- Quase errou o ônibus?!
- Não, não. Mudei de rumo!
“Percebi”, pensei eu em um tom meio julgador.
- Meu nome é Ana Letícia.
- Eu sou a Vida. Ela respondeu muito simpática
- Vida? Bonito nome! Vida de que?
Ela me olhou meio confusa, me deixando confusa, pois ao mesmo tempo que ela parecia não saber onde estava, ela me
parecia tão sábia.
- Como assim Vida de que? Depende... de tudo!
Eu ri, com certeza ela teve uma noite intensa,
e ainda estava sobre efeito de algum narcótico, apesar da aparência limpa. Mas
agora quem me observava era ela, e tive a impressão que ela estava pensando
exatamente a mesma coisa de mim. Naquele momento achei que iniciar uma conversa
não foi a melhor ideia do mundo e torci intensamente para que meu ônibus
chegasse logo. E torci mais ainda para ela não pegasse o mesmo.
- Você não tem sobrenome? Perguntei.
- Não, eu sou só Vida. Vida das pessoas, das
plantas, animais e por aí vai.
Percebendo o tamanho da loucura da moça resolvi
não questionar e entrei na brincadeira.
- Hum! E
para onde a Vida vai? Perguntei segurando a risada pelo trocadilho infame.
- Não sei. Respondeu no mesmo tom tranquilo de
antes. – Me perdi, e agora preciso de uma carona.
Nesse momento, comecei a ficar preocupada com a
situação daquela mulher, olhei ao redor pensando no que fazer e foi aí que eu
me dei conta que o ônibus já estava demorando demais. Olhei em volta e vi que o
carro no posto de gasolina era o mesmo há tempos e as pessoas na calçada não mudaram
de lugar. Havia um silêncio inacreditável.
- Parece que o tempo parou. Falei em voz alta.
- Sim! Eu parei para você!
Disse ela naturalmente, sorrindo, sempre
sorrindo. Um sorriso que iluminava seu ser. E me deixava cada vez mais confusa.
Apesar da loucura toda, ela realmente parecia estar falando sério.
- Você está me assustando, Vida!
Disse aquilo querendo desacreditar, mas quase
acreditando. A mulher olhava na mesma direção que eu, mas ao invés
de espantada com aquela cena estática, ela olhava com tranquilidade. Como se
esperasse o meu tempo de compreender.
- Por que assustando, Ana? Eu sou a Vida, não a
morte! A morte sim, quando pede carona, deve assustar as pessoas, com aquela
roupa preta e sua foice.
Ela riu, e eu também. A Vida sabia ser
engraçada. Mas eu, na ânsia de entender aquilo tudo, logo continuei o
interrogatório:
- Vida, mas eu não estou entendendo nada, por
que tudo isso? O que você está fazendo aqui? Como assim se perdeu?
- Eu errei o caminho, tropecei, e quando
levantei não sabia mais onde estava. Agora tenho andado procurando o ponto de
onde parei.
- Você se perdeu há muito tempo?
- Sim. Nem sei quanto. E parece cada vez mais
difícil de me encontrar. Eu chego perto das pessoas, mas elas não querem saber muito de mim.
- Mas as pessoas vivem, certo? Então você está
com elas?
Perguntei aquilo e franzi o cenho, espantada
com a minha própria pergunta. O que não causou o mesmo efeito nela, que
respondeu naturalmente, com a mesma tranquilidade desde o início da
nossa conversa.
- Sim, eu estou com as pessoas, mas elas não me
notam.
Olhei para ela com um aperto no peito, me
sentindo culpada, pois algo me dizia que eu estava incluída naquelas pessoas.
- Tudo bem, eu não tenho pressa.
Me espantava a calma com que falava aquilo
tudo, a ternura que havia nela. Eu naquela situação já estaria descabelada,
chorando pelos cantos, desesperada... Mas que diabos! Pensei me repreendendo, lá
estava eu de novo, analisando aquilo como se fosse real. É claro, que logo eu
acordaria, aquilo não passava de um sonho.
- Não é sonho, Ana! Se você preferir e posso
deixar o tempo correr normalmente, mas seria um desperdício, já que agora nos
encontramos.
Meu coração disparou, e senti o sangue se
esvair do meu corpo. E a voz demorou a sair.
- Não, está ótimo! Parece que o ar está mais
leve, o sol brilhando mais, as pessoas... engraçado ver as pessoas assim. É uma
sensação tão boa, nunca senti nada parecido.
Naquele momento comecei a reparar em tudo que
estava a minha volta, paralisado ainda. Olhei para o céu e vi um pássaro, congelado, com as asas abertas. Vi um homem abaixado na porta da sua padaria dando uns
pedaços de frango a um cachorro magro. Vi a formiga carregando uma folha no chão, determinada. E vi tantas outras coisas, que há muitos anos não
parava para olhar. As flores, as cores. Tudo.
- É tudo tão bonito! Disse.
Começava a perceber, o que aquela
mulher falava. Meu pensamento, ao contrário do tempo corria a mil por hora, eu
tinha tantas perguntas. É como se nós vivêssemos todos os dias sem
ver a vida passar...
- Sim. Ela interrompeu meu pensamento. - É o
que eu disse, vocês não me veem mais. Por isso está tão difícil de retomar meu caminho.
Ótimo! Além de tudo ela lia pensamentos. Eu
estava ficando angustiada, pois eu sabia que aquele encontro não duraria muito.
A Vida precisava seguir.
- Mas eu não sei como te ajudar a encontrar o
caminho!
- Você já me ajudou! Você sorriu para mim, Ana!
E agora não posso deixar você ir como se nada tivesse acontecido.
- Ué?! Mas não é a vida que deveria sorrir para mim?!
Falei e logo me arrependi. Droga!! Lá estava eu,
novamente, fazendo piadas sem graça. Sem saber como lidar com aquela situação.
Ela me olhou no fundo dos olhos, bela, como a vida deve ser e falou:
Ela me olhou no fundo dos olhos, bela, como a vida deve ser e falou:
- Não!!
A Vida só sorri de volta!
Olhei para rua, para a minha direita, e vi
já longe o ônibus que eu esperava... naquele ônibus que eu nunca mais subi.