sábado, 19 de maio de 2018

Salto Alto

Salto Alto

 Eu estou aprendendo a andar. Sim, caminhar, um passo depois do outro...

 Irônico, eu já fui a tantos lugares e planejo ir a tantos outros, nunca percebi que é preciso, antes de tudo, saber andar.

 Me sentia tão forte. Não conseguia ver que, na verdade, eu rastejava pela vida, agarrada a tanto peso, que isso nem de longe era uma caminhada, era só transporte de carga.

 Eu queria voar e algo não combinava.

  Então resolvi parar e olhar. Reconheci tudo aquilo que não era meu e carregava na bagagem... que alívio devolver a cada dono seus pertences. Agradeci o tempo que fiquei com eles, aprendi muito, mas não podia mais, eu precisava voar.

  Ainda pesava. Percebi que muitas coisas, mesmo sendo minhas, também não podia manter. Essas foram difíceis de tirar. Encontrei muitos lixos, descartei. Mas também, encontrei ouro, sim, tantos ouros, e lutei por eles, eram meus. Tanto brilho não me deixava perceber, eram do universo, e com o universo precisavam ficar.

  Então fui soltando as moedas devagar. Vi algumas rolando para longe, onde eu não podia mais alcançar. Minha respiração começou a acelerar e o medo tomou conta... eu precisava delas. Como seria sem meu ouro?

- É ouro, Isabela! Não solta. Alguém falava. 

  Logo esqueci da caminhada, e corri, atrás do que eu pude salvar, algumas moedas perdi, não chorei por elas, mas as que ficaram eu segurei mais forte. 

  E assim fui diminuindo a bagagem. Não esvaziava, mas ficava mais leve. Fui pegando o jeito e esvaziando mais, era bom, mas na hora dos ouros, eu sempre escondia uns no fundo da mochila, por segurança, pensava.

  Foram anos assim, era bom, mas não era tudo... Não foi o suficiente. Se eu realmente quisesse voar, precisava ser tudo. E chegou um momento em que eu achei, realmente achei, que a mochila estava vazia. Eu procurei na bagagem, no que restou dela, procurei no fundo, não vi mais nada. O que pesava tanto ainda?

  Abaixei a cabeça para pensar e então pude ver, debaixo dos meus pés. Olhando lá do alto reconheci, eram dois grandes blocos de concreto preso embaixo de cada pé. Me deixavam mais alta, me faziam olhar por cima, orgulhosa de mim. Mas se eu quisesse mesmo caminhar longe, precisava me livrar desse peso. 

  Sacudi os pés, como criança que pisa em chiclete, e a cada movimento o concreto ia batendo e quebrando um pouquinho, me deixava instável, era estranho. 

  Percebi que não conseguiria mais caminhar com a altivez de um leão se o concreto não estivesse perfeito, quadrado. Como ia enxergar mais longe? Saber mais? Ser maior? 
  
  O concreto era uma conquista, eu mesma moldei, cada vitória, eu acrescentava uma camada e me sentia grande. Como deixar aquilo se esfarelar e ficar pelo caminho? Não consegui. 

  Aprendi a abaixar a cabeça e olhar para ele nos momentos em que pesava demais, mas em geral fingia que era meu amigo, meu suporte. Não era, eu queria voar e o concreto não deixava.

  A mochila estava vazia, os bolsos vazios, porque eu não consigo achar um jeito de caminhar com os blocos? Caminhei até aqui com eles, para que tirar agora?

- Pra voar, Isabela... pra voar! Uma voz dizia.

    Era hora de tirar de vez. 

  Tentei de todas as formas, não saía, que desespero, eu queria muito tirar. Pensei que meu pé e o bloco fosse uma coisa só. Achei que arrancar os pés era uma boa ideia e se eu cortasse no lugar certo ainda poderia andar, só com os calcanhares. Comecei a cortar, sim cheguei a cortar, meu pé não era bom. 

  Ai, ai, doía muito, eu não devia estar cortando no lugar certo. Olhava, mas em pé não podia ver direito. A cabeça erguida me mostrava o mundo, mas não meus pés. 

  Então me abaixei, mais, mais e, então, me curvei. Foi só aí que eu pude ver a linha, nada sutil, que me unia e me separava do concreto. Será que sai? 

  Decidi, o concreto sai. Então, me curvei totalmente, olhei bem de perto e, que alegria, agora via com clareza, o concreto era meu sapato... alto, firme, duro. 

  "Agora é fácil", pensei, era só trocar de sapato. 

  Tirei na hora, salvaram-se os pés. Quero correr descalço, me jogar, ir longe, mas ainda não podia...

  Eu, distraída, os guardei na mochila, e não pensava duas vezes antes de calçá-los, quando precisava. Tão boba, esqueci que a mochila também sou eu. 

  Eles precisavam ficar para trás, pensa que é fácil? Sem eles eu era pequena. Demorei para entender, que sendo pequena seria muito mais fácil voar. 

  Então parei de novo e dessa vez, sentada, me despedi dos saltos de concreto que por tanto tempo carreguei. Precisou coragem para levantar. 

  Eles ficam e eu sigo em frente, inteira. Os pés machucados vão levar um tempo para se recuperar. Ainda meio cascudos, meio quadrados, falta equilíbrio.

Não, eu ainda não posso voar. Estou apenas reaprendendo a andar. Tenho caído bastante, a mochila vazia, só parece vazia, aprendi que é sempre bom parar e olhar mais uma vez. Eu quero correr, mas preciso ter paciência. 

- Um passo depois do outro, Isabela

 A voz que fala é chata, ainda não posso confiar nela completamente, mas estamos aprendendo a conversar. Me sinto confiante, agora já sei o que fazer quando acumular concretos nos pés novamente...

  Me sinto tão leve, mas aprendi a caminhar com calma, pois às vezes erro na força do passo e me machuco. Aliás, se no caminho te acertei alguns golpes, peço desculpas, é porque eu ainda estou aprendendo a andar...
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